A/r/queologia
arqueologia
da
memória na galeria do dmae
Na galeria, a
primeira impressão é de que as paredes brancas, abertas em
arcos, estão à
espera de ocupação. No entanto, alguns passos avante, no
corredor principal, e
percebem-se pequenos objetos fixados na parede, diretamente.
Abandono e
deslocamento foi a primeira sensação que tive com a exposição Memória suspensa, aberta à visitação na
Galeria do Dmae (rua 24 de Outubro, 200), até 8 de junho.
A exposição não envolve
o espectador. É preciso que este caminhe até ela e, aos poucos,
enfronhe-se nas
memórias dos artistas Fabiano Gummo, Marcelo Armani e Marco
Silva. Eles, juntamente
com Lucas Moreira, formam (formavam), desde 2009, o Tentacle Ensemble
Collective (TEC),
que desenvolve trabalhos unindo arte conceitual, música
experimental e
videoarte, entre outras manifestações. No projeto Memória
suspensa, eles pretendem tratar do último minuto, tentam
localizar onde a mente estará quando chegar a morte, o
esvaziamento. A ideia,
de acordo com o material de divulgação, é que “no fim, as
memórias de nossas
vidas se tornarão nossa própria vida”.
Inicialmente, o
projeto foi pensado para um espaço bem menor, o subsolo do Paço
Municipal. A
escultura de uma forma humana seria suspensa ao centro de um
cubo, circundada
por um objeto de cada artista. Durante todo o tempo, sons de
frases e ruídos,
além de vídeo de diversas fases da vida deles, seriam
repassados. Essa espécie
de catarse não chegou a ser realizada. O comitê municipal que
define a ocupação
dos espaços públicos da Prefeitura de Porto Alegre encaminhou Memória Suspensa para a Galeria do
Dmae. Um desafio, pois, além de ser bem maior, é formada por
três corredores, o
que impediu a colocação da escultura central. Os artistas também
precisaram
improvisar muitos mais objetos memorialísticos, para preencher o
espaço. Os
problemas não ficaram por aí. No terceiro dia, o equipamento
eletrônico de
áudio e o telão pararam de funcionar.
Entrei em contato com
Fabiano Gummo, por e-mail. Ele explicou que seria colocado um
televisor e
fontes de som para tentar reduzir o problema, mas acabou
desistindo. A mostra
já era outra. O objetivo inicial de tensão psicológica gerada a
partir de um
objeto de cada artista teve de ser substituído, na imensidão da
Galeria do
Dmae, por uma espécie de museu pessoal, em que a memória buscava
novos objetos
conduzidos pelo fio condutor da vida de cada um.
Não há tratamento nos
objetos. Os artistas se apropriam de outros preexistentes sem
modificá-los. Estão
pregados nas paredes ou sobre pedestais emprestados da própria
galeria. Tudo
parece aleatório, reforçando a ideia de deslocamento. Ainda por
e-mail, Gummo
disse que a intenção não era fazer ready mades ou reapresentar
objetos, mas
“retirá-los do ‘depósito mental’ para que nos indicassem nossos
atos do
passado, nossos encontros, nossas ilusões, nossas antigas
curiosidades, nossos
estímulos”.
No espaço amplo do
Dmae, há uma desconcertante sensação de busca por um sentido, o
que, é
possível, tenha impulsionado os artistas na escolha dos objetos.
A apropriação
está presente em toda a mostra, uma espécie de colecionismo de
uma vida inteira,
em que a aparente escolha arbitrária de objetos gera sentidos de
identificação
com o espectador (quantos não guardam bibelôs de avós, fotos de
família,
cartas, objetos que não têm valor estético, mas sentimental?).
Os objetos de Fabiano
Gummo estão concentrados na infância. Alguns deles: uma grande
folha de
almanaque, com rabiscos de quando ele tinha cerca de 10 anos de
idade; um
bibelô que ele chama de Confúcio, mas
que pode ser um Buda ou simplesmente uma figura oriental; uma
fotografia dele na
adolescência; uma valise que parece muito velha para pertencer a
ele; um livro
antigo; um cadeado; o folheto Abordagem
laxativa, que ele produziu em 2007 com Fabio Godoh.
Todos esses objetos, guardados
ao longo de anos e agora espalhados pelas paredes e mesclados
aos dos outros
dois artistas, são carregados de nostalgia.
Possivelmente, são objetos
de família a valise e o bibelô, assim como um livro pregado na
parede. Ao
denominar de Uma perna come feijão, a
outra não uma bota ortopédica presa à parede pelos ferros
que, no passado, agarravam-se
às pernas da criança, o artista mostra um humor enviesado. Da
mesma forma, a
felicidade mostrada na imagem de adolescência é minimizada pela
passagem do
tempo, que deixou a coloração da fotografia escura, pesada. É
como se ele
concluísse que, afinal, todas as lembranças guardam um travo
amargo.
Marcelo Armani nomina
todas as suas peças com um único sinal – ? –, um ponto de
interrogação. O
músico e agora estudante de Engenharia parece tornar pública a
dualidade de suas
escolhas. A conclusão óbvia não é desmentida nos objetos
expostos. Quase todas
as obras são metais, peças de automóveis, restos de tomadas, uma
hibridização dos
dois caminhos: a concretude da ciência exata levada ao estatuto
de obra de arte
ao ser exposta em uma galeria. São formas inacabadas,
retorcidas,
surpreendentemente leves. No resgate de trajetórias que objetiva
Memórias suspensas, Armani não parece
tratar da dualidade como um problema; mostra, antes, uma
possibilidade.
O artista faz também
uma interessante exceção: uma caixa de acrílico, resumo de vida
pulsante. Nela,
Armani recolheu o exame de gravidez da mãe, cartas de parentes
endereçadas a
ele, cartões-postais de amigos, manifestações de sentimentos.
Se Gummo e Armani
mostram os sentimentos de maneira intermitente, em uma caixa
lacrada ou por
meio de ironias, Marco Silva os oferece ao espectador desde o
início. Ele é
escrachado: um pedaço de si mesmo, em forma de maçarocas de
cabelos, pende da
parede (Higiene), uma foto, Aura,
mostra seu “interior”. Outras
tantas fotografias, da infância e da adolescência (sob o nome Primórdios) e da alegria da paternidade,
com o filho no colo, são expostas. Ali está o artista, ele mesmo
apropriado e representado.
Há também uma prova de química de 1992, pautas musicais, uma
velha máquina de
escrever (Conflagração de ideias) com
uma lupa. Assim como em Gummo, no entanto, a cor envelhecida das
fotos, o fato
de estarem diretamente na parede, como que largadas, não trazem
conforto ao
espectador, mas uma sensação de perda, de coisa esvaída, finda,
um certo
amargor.
Silva traz ainda
outras peças, desestruturações mostradas por meio de óculos
quebrados, pedaços
de troncos e folhas secas (Decompositor).
O tempo que foge, o fim que chega ou uma transformação?
Sonhos, trajetórias.
Invocações do passado. A proposta do TEC é mostrar o que restará
na memória, o
que ficará, qual será o pensamento no último segundo. No
entanto, o que é
apresentado não lembra a morte, ou o último segundo ou o fim.
Parace mais
tratar-se de passagens, transitoriedades.
Não é possível saber
se, não houvesse os problemas já apontados, o intento seria
alcançado. De
qualquer forma, este texto trata do que está exposto, não de
intenções. Com um
trabalho de arqueologia da memória, os artistas, cada um a seu
modo, resgataram
objetos que são, mais que tudo, a própria vida de cada um. Eles
estão ali, com
seus diários em forma de objetos, mostrando-se, uns mais, outros
menos, ao
espectador.
A escolha dos objetos
– que é sempre subjetiva e arbitrária –, a forma crua de
expô-los, a resolução
definitiva de abrir mão de áudio e vídeo, tudo isso fez com que
Memória suspensa tivesse uma vida
independente de seus criadores se levada em consideração a
proposta inicial. A
sensação de deslocamento, de coisa fora do lugar que se tem ao
entrar na
Galeria do Dmae atesta isso. Algo está fora da ordem, espaço e
objetos não se
encaixam. Nesse desconforto, a mostra se adensa, não facilita.
Os retalhos de
vivência mostram que existe expectativa, e já não está nas mãos
dos três
artistas determinar se o devir é a morte ou se a suspensão é uma
pausa para o
continuar da vida.
texto de Rosane Vargas